Entrevista: a prisão de Oswaldo Eustáquio é contrária à dignidade da pessoa humana?
Parecer jurídico de Danielle da Rocha Cruz e Agassiz Almeida Filho aponta afronta à Constituição
POR EMERSON BARROS DE AGUIAR
Esquerda Virtual - No última dia 13 de janeiro, os professores Agassiz Almeida Filho e Danielle da Rocha Cruz encaminharam ao Dr. Ricardo Freire Vasconcellos, advogado de Oswaldo Eustáquio Filho, parecer jurídico analisando a eventual ilegalidade da prisão do jornalista conservador. Sua preventiva foi decretada em 17 de dezembro de 2020 por descumprimento de prisão domiciliar. Dias depois, tendo ingressado no sistema carcerário, Eustáquio sofreu um acidente que o deixou em situação de paraplegia comprovada por laudo médico. É sobre este caso polêmico que o Esquerda Virtual entrevista Danielle da Rocha Cruz e Agassiz Almeida Filho:
Esquerda Virtual: O jornalista Oswaldo Eustáquio, como é noticiado por toda a imprensa, é um dos ativistas que incentivaram o discurso radical contra o STF e a favor de uma possível intervenção militar no Brasil. Não deveria realmente estar preso?
Danielle Cruz: Pessoalmente, sou totalmente contrária às ideias e ao comportamento político de Oswaldo Eustáquio. É sempre possível divergir da opinião de alguém, sobretudo no caso de pessoas que participam de alguma maneira de atos antidemocráticos. Porém, Oswaldo Eustáquio tem direito de ter as suas opiniões políticas e de apresentá-las publicamente em nome da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, já que ele atua como jornalista. Se houver algum excesso no exercício dessa liberdade, a solução do Direito é que tais excessos sejam reparados de forma proporcional pelo Judiciário. Nada justifica a manutenção da prisão preventiva de uma pessoa que precisa de tratamento médico especializado fora do ambiente carcerário, sobretudo quando não existe nem mesmo um indiciamento, ou seja, nem mesmo a identificação de qual foi o crime praticado pelo investigado em um inquérito policial. A presunção de inocência deve valer para todos.
Esquerda Virtual: Mas a defesa da democracia às vezes não exige medidas um pouco mais duras par a sua própria preservação?
Danielle Cruz: Um dos valores democráticos centrais é a preservação da dignidade humana e dos direitos fundamentais em geral. Qualquer punição, aplicada a quem quer que seja, deve observar aquilo que determinam as leis e a Constituição. Não é possível escolher as pessoas em relação às quais os direitos fundamentais devem ser aplicados. Se a prisão preventiva for ilegal, deve ser afastada. De fato, a proteção da democracia justifica medidas um pouco mais duras, sobretudo quando há crimes que foram praticados com o fim de desestabilizá-la. Mas é preciso apontar que crimes são estes e quais as pessoas responsáveis por praticá-los. Afinal de contas, os direitos e garantias fundamentais também integram o patrimônio jurídico das pessoas com as quais não concordamos. A democracia não pode ser defendida produzindo desvios jurídicos que significam a sua própria negação.
Esquerda Virtual: Deve haver uma certa resistência política pelo fato de dois juristas reconhecidamente progressistas terem abraçado a causa de Oswaldo Eustáquio Filho. Isto realmente acontece?
Agassiz Filho: Não pode haver disputas políticas quando o tema é a aplicação da Constituição. Realmente, um certo grupo de pessoas não ficou feliz com o parecer. O escritório recebeu algumas poucas mensagens e ligações de protestos. Todas de colegas e amigos politicamente próximos. Mas é preciso lembrar que a aplicação seletiva do Direito é típica dos regimes de exceção. E uma das páginas que o país precisa virar com urgência se relaciona exatamente com o tema da justiça seletiva. Considero as críticas naturais em um ambiente de polarização. Porém, é necessário conversar com as pessoas de todas as posições políticas e convencê-las de que há pautas suprapartidárias. Quando o então candidato Flávio Bolsonaro desmaiou em um debate para a prefeitura do Rio de Janeiro, em 2016, a deputada Jandira Feghali, que é médica e filiada ao PCdoB, tentou ajudá-lo. Sem contar o caso de Sobral Pinto, que era católico e tinha aversão ao comunismo, mas foi advogado de Prestes e Harry Berger durante o Estado Novo. Nada mais natural para qualquer um do que a defesa da Constituição e dos direitos fundamentais.
Esquerda Virtual: Fomos informados de que o parecer foi elaborado gratuitamente. Este não é um ato de apoio político aos grupos conservadores?
Danielle Cruz: A questão de Oswaldo Eustáquio ser conservador é completamente irrelevante neste caso. Ele é uma pessoa que está presa e que necessita de tratamento médico especializado para tentar uma reabilitação medular que pode minimizar ou superar seu quadro de paraplegia. É uma questão humanitária acima de tudo. E, além disso, o caso simboliza parte das dificuldades pelas quais passa o Brasil na atualidade, que giram, precisamente, em torno de uma polarização política que tem interferido na aplicação do Direito e gerado forte instabilidade para a vida social. Além disso, numa democracia é preciso trabalhar para a formação de um consenso que permita a existência de uma oposição que também tenha direitos. A tese do inimigo político não faz parte do dicionário democrático. O momento atual não permite uma revolução; reclama um adequado funcionamento das instituições.
Esquerda Virtual: E quanto à gratuidade do parecer? Não é uma forma de expressar apoio político a um movimento conservador?
Agassiz Filho: O escritório elabora dois pareceres por ano, gratuitamente, quando as pessoas que procuram a firma não têm condições de pagar os honorários e quando o caso possui relevância social ou política. Minha impressão é que o caso Oswaldo Eustáquio se encaixa em todos os critérios. A família está sem renda no momento. Já a relevância social e política da consulta se manifesta através da importância do caso para outras pessoas que estão presas na mesma situação e também para a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Jornalistas de todos os órgãos e espectros ideológicos estão sofrendo com uma interferência excessiva por parte do Poder Judiciário. O controle da liberdade de imprensa, que pretende proteger a imagem e a honra das pessoas, deve ser feito de modo a punir eventuais excessos, sem, contudo, impedir que a comunicação social tenha continuidade. O controle judicial da imprensa deve ser excepcional e seguir a fórmula Sullivan, segundo a qual, em linhas gerais, só há excesso por parte da imprensa quando o órgão ou o jornalista sabiam que a matéria era falsa ou tinham dados para reconhecer a sua falsidade.
Esquerda Virtual: Quais as bases jurídicas que respaldam a libertação de Oswaldo Eustáquio?
Danielle Cruz: Há uma infinidade de filigranas jurídicas envolvidas no caso. Para simplificar, Oswaldo Eustáquio necessita de reabilitação medular no Hospital Sarah Kubitschek, e essa reabilitação só pode ocorrer se a prisão preventiva for revertida ou substituída por uma domiciliar. As bases jurídicas que justificam a sua liberdade são a preservação da dignidade humana, a proteção da integridade física e moral do preso, a proibição de tratamento desumano e degradante e o direito de acesso à saúde. Também há dúvidas sobre a própria validade da prisão preventiva e das medidas cautelares que foram aplicadas a ele. O caso Oswaldo Eustáquio não é único. Milhares de presos no país passam por situação semelhante, o que converte o sistema carcerário numa espécie de referência medieval incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Esquerda Virtual: Há alguma previsão de data para a liberdade ou o tratamento de Oswaldo Eustáquio?
Agassiz Filho: Nos últimos anos, o tempo de decisão do Poder Judiciário e do Ministério Público, com exceções, naturalmente, tornou-se imprevisível por vários motivos diferentes. Oswaldo Eustáquio já deveria estar recebendo o tratamento médico de que necessita. O advogado Ricardo Vasconcellos, que o defende de forma combativa e quase heroica, impetrou um habeas corpus, há quase um mês, que ainda não foi julgado. Por quê? Não saberia lhe dizer. Mas essa inação está na linha do que vem se tornando a persecução penal no Brasil. A imprevisibilidade substituiu a segurança jurídica, fórmula que não tem como funcionar e que precisa passar por ajustes o mais rapidamente possível. O sistema de persecução penal no Brasil gera um descalabro humanitário que afasta qualquer pretensão séria de o país ser considerado um verdadeiro Estado Democrático de Direito, impedindo a implantação da paz social a que todos os brasileiros almejam.
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