Prisão domiciliar de Crivella é ilegal - Almeida & Cruz | Sociedade de Advogados

Prisão domiciliar de Crivella é ilegal

 

POR AGASSIZ ALMEIDA FILHO

 

Faltava uma última cena, neste trágico final de 2020, para que os ritos e símbolos da República de Curitiba reencontrassem a sua plateia. As grandes operações judiciais, com centenas de agentes paramentados, viaturas, luzes e sirenes nervosas, estão praticamente entrando para o calendário natalino. É uma espécie de celebração geral do suplício que nos remente para os cadafalsos portugueses do século XVIII.

A prisão preventiva do prefeito Marcelo Crivella e de outros investigados na Operação Hades cumpre essa lúgubre função ritual. Houve vazamentos para a imprensa, vídeos da prisão, fotos dos denunciados, registros dos membros da operação, entrevista coletiva, e, principalmente, na clássica linha de Moro e Dallagnol, a mais sincera garantia, por parte de agentes e membros do Ministério Público, de que a prisão preventiva se baseou estritamente na lei e na Constituição. Entre os jornalistas da coletiva, porém, uma questão se impunha sobre todas as demais: era necessário prender Marcelo Crivella, faltando apenas nove dias para o fim do seu mandato? 

É preciso analisar a decisão que decretou a preventiva para que possamos entender em que requisitos ela realmente se baseou. A peça de trinta e cinco páginas trata da questão em três oportunidades. Afirma que as práticas ilícitas de Crivella provavelmente continuariam pelo seu propósito de permanecer na vida pública. Ressalta que os envolvidos teriam a expectativa de seguir cometendo delitos. Por fim, a decisão também justifica a prisão pelo fato de Crivella aparentemente ter entregue um celular de outra pessoa às autoridades, o que teria ocorrido numa busca e apreensão deflagrada em setembro de 2020.

Estas três justificativas, contudo, são completamente irrelevantes para se decretar uma prisão preventiva, mesmo contra um político como Crivella, que granjeia forte antipatia popular. Uma pessoa só pode ser presa preventivamente quando os requisitos da lei estiverem presentes no momento em que a prisão for decretada. São eles a salvaguarda da ordem pública, a proteção da ordem econômica, a conveniência da instrução criminal e a garantia do cumprimento da lei penal. Também é importante ressaltar que a prisão preventiva é medida extrema, que só pode ser adotada de forma absolutamente excepcional, quando nenhuma das demais alternativas previstas em lei for suficiente para garantir a normalidade do processo e a tranquilidade social, como o uso de tornozeleira eletrônica, a proibição de frequentar lugares, de encontrar pessoas etc.

A suposição de que Crivella praticaria crimes por sua pretensão de permanecer na vida pública e ser candidato em 2022 não tem qualquer relação temporal com a atualidade, não justificando, por isso, uma prisão preventiva, que precisa gozar de contemporaneidade para ser válida. Do mesmo modo, a decisão que determina a preventiva não pode se basear na expectativa ou no receio de que alguém venha a praticar um crime. É necessário que o delito esteja ocorrendo, que a conduta não possa ser impedida de outra maneira e que haja provas neste sentido. Por fim, o fato de alguém entregar às autoridades um aparelho celular que não lhe pertence, em setembro de 2020, não pode justificar, à luz do Direito, uma prisão preventiva em dezembro do mesmo ano, ainda que tenha havido má-fé na fase da busca e apreensão. É preciso que a instrução criminal esteja sendo ameaçada quando a decretação da prisão preventiva vier a ocorrer. Se o ânimo de prejudicar as investigações de fato existir, isto precisa ser demonstrado na prisão que vier a decretar a preventiva.

Finalmente, é necessário abordar a questão da prisão domiciliar. O presidente do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu a ordem de habeas corpus requerida pelos advogados de Crivella, afirmou o seguinte: “(...) em meu sentir, no caso dos autos, as circunstâncias apresentadas não são suficientes para demonstrar a periculosidade do paciente, de modo a justificar o emprego da medida cautelar máxima – especialmente – a fim de evitar a prática de novas infrações penais, tendo em conta que o mandato de prefeito do município do Rio de Janeiro expira em 01 de janeiro de 2021.” É obvio que a decisão que concedeu o habeas corpus não considera a preventiva necessária. Do contrário, a medida não teria sido revogada sob o argumento da falta de periculosidade.

Essa prisão domiciliar determinada pelo presidente do STJ é a chamada prisão domiciliar cautelar. Ela deve ser aplicada, sempre em substituição à prisão preventiva, quando alguém que deveria estar preso não puder permanecer em estabelecimento carcerário por ter mais de 80 anos, estiver debilitado por doença, tiver aos seus cuidados criança menor de 6 anos etc. Em razão da idade e da pandemia, naturalmente, um preso que tenha 63 anos de idade, como é o caso de Crivella, deveria se beneficiar com a prisão domiciliar. Mas a substituição só se justifica quando a prisão preventiva for válida, concedendo-se a medida domiciliar como meio de minimizar os efeitos da preventiva sobre o preso ou seus familiares. Não é o que acontece com Crivella. Se a preventiva não observar os requisitos da lei, deve ser revogada e não substituída.

A ordem de habeas corpus deveria ter sido concedida para colocar Crivella em liberdade, sendo completamente irrelevante, para fins de decretação de prisão preventiva, se ele tem ou não responsabilidade em relação aos fatos que lhe são imputados na denúncia. A apuração de eventual participação nos crimes cabe à investigação e ao processo. Mas o espetáculo em torno da prisão e a pressão da opinião pública mais uma vez se impuseram. No Brasil de hoje, onde o Estado de Direito corre o risco de naufragar a cada sinal de tempestade, perante o fantasma do lavajatismo, certamente Crivella deve estar comemorando a negação dos seus direitos fundamentais e a concessão de uma prisão domiciliar abusiva e ilegal.

Fonte: Brasil 247

Foto: Reprodução